A Emenda Constitucional nº 132/2023 (EC 132) é a norma estruturante da reforma tributária e, apesar de ter como foco principal a tributação sobre o consumo, também promoveu alterações relevantes nos impostos que incidem sobre a propriedade: ITCMD, ITBI, IPTU e IPVA. O Projeto de Lei Complementar nº 108/2024 (PLP 108), que disciplina diversos aspectos do novo sistema tributário, também propõe alterações relevantes na legislação do ITCMD e do ITBI. Algumas dessas alterações legislativas abordam matérias que haviam sido analisadas e definidas pelos tribunais há tempos. Outras caminham em paralelo com discussões jurisprudenciais recentes ou atuais, que prometem alterar substancialmente o cenário jurídico da tributação da propriedade. Neste artigo, analisamos as principais alterações instituídas pela EC 132 ou propostas no PLP 108, procuramos identificar as que podem proporcionar majoração de carga tributária e confrontá-las com a jurisprudência dos tribunais superiores, para identificar uma tendência de consolidação de procedimentos ou de criação ou renovação de possíveis litígios. A criação de normas convergentes com a jurisprudência anterior e a pacificação de entendimentos jurisprudenciais convergentes com a legislação recém aprovada (ou proposta) contribuem para a promoção da segurança jurídica e pacificação definitiva do tema envolvido. Por outro lado, a criação de normas que conflitam com a jurisprudência antecedente milita em sentido diverso, pois tende a fomentar a litígios e renovar discussões já superadas. E na EC 132 e no PLP 108 é possível observar ambas as hipóteses.
ITCMD
A EC 132 estabeleceu a progressividade do ITCMD [1] e procurou suprir uma lacuna importante da legislação do imposto ao definir critérios transitórios para a tributação de bens no exterior ou bens pertencentes a pessoas (físicas ou jurídicas) residentes no exterior [2]. Os critérios definitivos estão sendo discutidos no PLP 108, que propõe a criação de normas gerais para o imposto a nível nacional. A regulamentação da incidência do ITCMD na transmissão de bens no exterior ou bens pertencentes a estrangeiros é uma decorrência óbvia do posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Tema 825 da Repercussão Geral [3], da ADO 67 e nas ADIs que analisaram normas estaduais específicas sobre o tema. E mesmo após a promulgação da EC 132, o STF não tem autorizado a cobrança do ITCMD sobre doações provenientes do exterior por estados que não atualizaram a sua legislação para conformá-la aos critérios transitórios definidos pela norma constitucional [4]. Durante o trâmite na Câmara dos Deputados, o PLP 108 flertou com a tributação dos planos de previdência privada, mas a versão aprovada no Senado afastou a incidência, submetendo-se ao entendimento recentemente firmado pelo STF no julgamento do Tema 1.214 da Repercussão Geral [5]. Algumas das regras propostas no projeto são relevantes para a tributação das pessoas jurídicas constituídas com o objetivo de realizar a gestão do patrimônio de pessoas físicas, as chamadas holdings. A principal é a que define a base de cálculo do ITCMD sobre quotas ou ações de empresas que não são negociadas em mercados organizados de valores imobiliários. Atualmente, essas regras variam de acordo com o estado. Alguns, como São Paulo, admitem a utilização do valor patrimonial (contábil) das cotas como base de cálculo do imposto. Outros, utilizam conceitos que perseguem o valor de mercado da empresa e das respectivas quotas. A valoração de uma empresa não operacional, como uma holding, tende a ser mais simples, mensurável pelo valor de mercado dos bens, deduzido de dívidas e gravames eventualmente existentes. A valoração de uma empresa operacional, por sua vez, está sujeita a alto nível de subjetividade. Até mesmo os profissionais especializados na compra e venda de empresas podem utilizar diferentes critérios de precificação, e ainda existem fatores intangíveis que podem tornar uma empresa mais valiosa para um determinado adquirente do que para outros.
A utilização de um critério objetivo como o valor patrimonial contábil contribui para a segurança jurídica, mas esse critério, particularmente, não é bem aceito pelo Fisco, por conta da possibilidade de subavaliação de ativos. Por outro lado, a falta de definição de um critério objetivo gera margem para subjetividade e insegurança jurídica. A versão do PLP 108 aprovada na Câmara propôs um critério “aberto” [6]. Durante o trâmite no Senado, o relator do projeto chegou a acolher uma métrica baseada no valor patrimonial das ações [7], mas o texto aprovado propõe que o cálculo seja feito com base no “valor de mercado dos bens que compõem o patrimônio líquido da empresa”, acrescido do valor de mercado do fundo de comércio.
Caberá à Câmara definir o texto final da norma. Na nossa opinião, ambas as redações aprovadas nas casas legislativas são falhas [8]. Independentemente da decisão política que será adotada, é importante que o Congresso corrija a redação da norma e delimite de forma clara e tecnicamente consistente a base de cálculo do ITCMD nessa hipótese, para que a nova regra não gere insegurança e instabilidade jurídica.
É importante observar que a base de cálculo do ITCMD sobre bens imóveis e quotas de empresa de capital fechado é uma matéria controversa, que está sendo analisada pelo STJ no julgamento do Tema 1.371[9] dos recursos repetitivos. O tribunal decidirá se o Estado pode arbitrar a base de cálculo do ITCMD quando entender que o critério previsto em sua própria legislação — como o valor patrimonial da quota de empresa — não reflete o valor de mercado correto do bem.
Curiosamente, o PLP 108 não propõe uma regra específica para a definição da base de cálculo sobre bens imóveis, que estão sujeitos à regra geral do valor de mercado, o que dá margem para que os Estados tentem utilizar o valor venal do ITBI e o valor de referência do IBS e CBS, mencionados adiante.
ITBI
O PLP 108 propôs alterações importantes nas normas gerais do ITBI previstas no Código Tributário Nacional (CTN).
O projeto propõe a antecipação do pagamento do ITBI para o momento da “formalização do respectivo título translativo, assim considerado a escritura pública ou documento equivalente passível de ser levado a registro no Cartório de Registro de Imóveis”. A versão aprovada na Câmara previa que a antecipação seria opcional ao contribuinte e autorizava o município a aplicar alíquota inferior à imposta no momento do título translativo da propriedade. Contudo, a versão aprovada no Senado tornou a antecipação regra, sem previsão da possibilidade de cobrança de alíquota inferior.
Historicamente, a jurisprudência do STF entende que a incidência do ITBI ocorre no momento do registro do título translativo do direito de propriedade. A alteração proposta no PLP 108 permite que o imposto seja cobrado no momento da formalização da escritura de compra e venda, independentemente do registro. Essa exigência já existe em alguns municípios e poderá ser questionada. A matéria tem relação com o Tema 1.124 da Repercussão Geral, pendente de julgamento, que analisa a incidência do imposto na cessão de direitos relativos à aquisição de bem imóvel.
Também merece especial atenção a regra que altera o artigo 38 do CTN e delimita o conceito de valor venal e a metodologia para a sua definição. O valor venal é utilizado pelo CTN para fixar a base de cálculo do ITBI, do IPTU e também é admitido pela jurisprudência como base do ITCMD sobre bens imóveis.
Embora o CTN disponha que o valor venal do imóvel é a base de cálculo do IPTU e do ITBI, o STJ já definiu, no Tema 1.113 dos recursos repetitivos [10], que o valor de referência definido unilateralmente pelo município — previsto em tabelas ou plantas genéricas de valores que servem de base de cálculo do IPTU (ou do próprio ITBI) — não pode ser utilizado como base de cálculo mínima do ITBI. A decisão afirma que o valor declarado pelo contribuinte goza de presunção de veracidade e só poderá ser afastado se o Fisco demonstrar que houve subfaturamento. Em respeito à jurisprudência do STJ, a alteração proposta no PLP 108 deve servir apenas para a definição de critérios uniformes de apuração do valor venal de imóveis, e não para ser invocada como base de cálculo mínima do ITBI.
Ainda em relação aos critérios propostos no PLP 108 para a definição do valor venal, observamos que eles são convergentes com os (mas não idênticos aos) critérios previstos no artigo 256 da Lei Complementar n. 214/2025 para a definição do valor de referência de bens imóveis perante a legislação do IBS e CBS.
IPVA
A EC 132 instituiu previsão de incidência do IPVA sobre veículos automotores aquáticos e aéreos, excepcionando alguns veículos utilizados em atividades econômicas específicas [11]. Além disso, autorizou a imposição de alíquotas de IPVA diferenciadas em razão do tipo, valor, utilização e impacto ambiental do veículo [12].
A previsão expressa de incidência do IPVA sobre veículos aquáticos e aéreos parece uma tentativa de superação da jurisprudência do STF que afirma que o critério material do imposto é restrito à propriedade de veículos automotores terrestres e não admite a tributação de aeronaves e embarcações [13].
A tributação desses bens pelo IPVA é extremamente questionável, e certamente será objeto de novas disputas judiciais, pois os fundamentos que motivaram o entendimento do STF acerca da não incidência do imposto se basearam na intepretação do artigo 155, inciso III da Constituição, que não foi alterado pela EC 132.
IPTU
A EC 132 flexibilizou e facilitou o aumento da base de cálculo IPTU ao permitir que seja atualizada por decreto do Poder Executivo, com base em critérios firmados em lei municipal [14].
A atualização da base de cálculo IPTU por meio de decreto do Poder Executivo, com base em critérios firmados em lei municipal, já havia sido debatida pelo STF no julgamento do Tema 211 da Repercussão Geral [15].
Na ocasião, alguns ministros se manifestaram a favor da possibilidade de a lei municipal estabelecer critérios para que a base de cálculo do imposto seja atualizada por decreto. De todo modo, os fundamentos adotados no julgamento do Tema 211 podem ser invocados para questionar os critérios que vierem a ser estabelecidos pela lei local, com base na autorização conferida pela EC 132 [16], se tais critérios proporcionarem uma atualização incompatível com os valores praticados no mercado imobiliário e com os índices de correção monetária.
Conclusão
Como visto ao longo deste artigo, há um movimento discreto de atualização de regras e consolidação de entendimentos jurisprudenciais, que desperta justa preocupação do contribuinte quanto à possibilidade de majoração dos impostos sobre o patrimônio.
Com efeito, a EC 132: (1) ampliou o campo de incidência (critério material) do IPVA para tributar embarcações e aeronaves e autorizou a adoção de alíquotas diferenciadas, baseadas em critérios ambientais; (2) supriu lacunas relativas ao ITCMD, como a regulamentação da incidência sobre bens no exterior e doações ou heranças que envolvem residentes no exterior; (3) instituiu a progressividade do ITCMD, que pode encorajar o aumento de alíquotas pelos estados; e (4) flexibilizou a atualização da base de cálculo do IPTU.
Já o PLP 108 propõe normas que podem pressionar a base de cálculo do ITBI, IPTU e ITCMD. É o caso (1) da norma que define os critérios para a apuração do valor venal perante a legislação do ITBI, que gera certa preocupação quanto ao risco de ser invocada como base de cálculo mínima do imposto (ITBI), além da possibilidade de influenciar de maneira reflexa o IPTU e o ITCMD; e (2) da norma que define a base de cálculo do ITCMD na transmissão ou doação de quotas de empresa “fechada”.
O tempo mostrará se essas alterações serão utilizadas pelos Fiscos como instrumento para tentar contornar as balizas fixadas em precedentes judiciais e fomentar a arrecadação em detrimento da capacidade contributiva do cidadão.
O risco é real, pois não raramente os contribuintes se submetem a cobranças ilegais, especialmente se o valor dos bens envolvidos e do tributo não justificar os custos de um processo. De todo modo, quando o valor do tributo envolvido for expressivo, são grandes as chances de que surjam novas discussões judiciais e sejam renovadas outras que já haviam sido pacificadas.
Nesse cenário de mudança, é fundamental que as medidas de gestão patrimonial e sucessória sejam precedidas de um estudo criterioso. (Consultor Jurídico em 22/10/2025)